sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

 




Entrevista explosiva publicada no Pavio Curto em abril de 2001


Dom Waldyr: ”Saímos da ditadura militar para a ditadura do capital”

O encontro com Dom Waldyr Calheiros foi na Cúria de Volta Redonda, na tarde quente e chuvosa de 8 de março de 2001, Dia Internacional da Mulher. Durante mais de uma hora, a equipe do Pavio Curto ouviu uma verdadeira aula de história e cidadania.

O bispo emérito da Diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda foi entrevistado por Alvaro Britto, Clóvis Lima, Andresa Gil, Dodora Mota e João Henrique Barbosa. Falou-se de ditadura militar, capitalismo, Igreja, movimento sindical, juventude, mídia, Henfil, mulher, imprensa alternativa e esperança.  

Alvaro – 37 anos depois do golpe militar e 16 após a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, ainda vivemos em uma ditadura?

D. Waldyr – Nós saímos da ditadura militar, mas o capitalismo procurou outro caminho para manter a sua dominação. Eles mandaram os militares de volta aos quartéis e implantaram o neoliberalismo. São cartas marcadas mundialmente, principalmente após o fim do modelo do socialismo real. Saímos da ditadura militar para a ditadura do capital. Mas já começa a haver uma reação contrária, um descontentamento geral de âmbito internacional. Os ditadores, como sempre, procuram não escutar. Querem só mandar. O resultado é o aumento da exclusão. Antigamente, chamávamos de marginalização. O marginal ainda estava na margem. Agora está excluído. 

Dodora -  Então a exclusão é um aprofundamento da marginalização?

D. Waldyr – A exclusão é muito pior. Na marginalização ainda havia possibilidade de pelo menos algumas migalhas chegarem à margem. E aí havia motivação para se brigar, lutar, reunir. Exclusão é não tomar conhecimento daqueles que não interessam à acumulação de capital. O próprio presidente Fernando Henrique confessou que o governo não tem solução para os excluídos. O pior é que a exclusão não ficou estabilizada. Ela cresce a cada dia. Aí está a iniquidade: um pequeno grupo está cada vez mais rico. 

Alvaro – E como sobrevivem os excluídos? 

Eles dependem do assalto, da violência, do tráfico de drogas. A sociedade não oferece outro caminho. 

Dodora – Os capitalistas perderam o controle da situação ou tudo isto já era previsto?

D. Waldyr – Eles já tinham conhecimento dessas consequências. Se entenderem que o atual modelo está esgotado, procuram outro para manter a mesma dominação e a mesma iniquidade com uma cara nova. Isso se não houver uma reação globalizada contra esse sistema.

João Henrique -  Na ditadura, a sociedade se organizou, enfrentou e derrotou o regime militar. E hoje, qual o caminho para mobilizar os excluídos contra o neoliberalismo?

D. Waldyr – Os excluídos vivem no desespero. Antigamente, as classes populares pelo menos tinham o pé em alguma atividade social. Já os excluídos não têm nenhuma esperança de colocar o pé e firmar-se na sociedade. O que vemos é uma minoria consciente que luta por espaços dentro da atual situação. Mas estes espaços ainda são pequenos. Antigamente, os movimentos populares da região tinham grande apoio do Sindicato dos Metalúrgicos. Hoje, isso acabou. Algumas organizações não governamentais, as ONGs, começam a incomodar, assumindo posições definidas em torno da miséria, mas ainda limitadas às consequências do modelo existente. Todavia, não se comparam à força que tínhamos nos sindicatos. O que foi mais atingido foi o relacionamento da produção, a relação entre capital e trabalho. Todas as vantagens da tecnologia e da mecanização serviram para concentrar ainda mais a riqueza e enfraquecer o trabalho. Eu vejo com muita esperança o Movimento Sem Terra. Os poderosos estão investindo tudo para abalar e desmoralizar o MST.  Precisamos, todos que estão na luta, fazer mais força onde a força está aparecendo, apoiando o MST.

Alvaro – Apesar do enfraquecimento dos movimentos populares, a oposição tem crescido a cada eleição...

D. Waldyr – Não basta ser oposição apenas no discurso. O mais importante é a prática, a participação na lutas e organização do povo. Infelizmente, muitos companheiros passaram deste para o outro lado, esquecendo dos antigos ideais. O grande desafio da esquerda é encontrar o caminho para questionar o modelo e ocupar espaços. Hoje não temos mais as certezas do passado. A utopia da libertação se apresentava e nos incentivava a lutar. Os capitalistas conseguiram desmoralizar a alternativa do socialismo, que era o nosso estímulo. Mas precisamos continuar construindo os sinais da nova sociedade. 


Alvaro – Mas boa parte da esquerda hoje nem fala em socialismo. Resume suas bandeiras à ética, democratização e melhor distribuição de renda. Isso resolve?

D. Waldyr – Mesmo quando o socialismo era uma aspiração comum da esquerda, havia uma variedade de modelos socialistas espalhados pelo mundo. Com o fim da União Soviética, apagou-se a luz. Algumas bandeiras que levantamos hoje são ambivalentes. E ética na política é um exemplo. Pode servir para consolidar o capitalismo. Mas alguns dizem que estão desmoralizando o modelo. 

Alvaro – A própria Rede Globo abriu um espaço grande para a campanha contra a corrupção eleitoral no ano passado...

D. Waldyr – Mesmo quem está na luta não tem certeza de nada. Hoje, essas denúncias da forma que são feitas servem para desmoralizar a política e aumentar a falta de credibilidade da população. Cada vez mais, diminuem a esperança do povo. 

João Henrique – Como o senhor avalia a polêmica ACM x Jader Barbalho?

D. Waldyr – A grande imprensa está a serviço da burguesia dominante. E aí transforma a crise em um grande espetáculo para anestesiar o povo em relação aos verdadeiros problemas do país. E ainda passa a imagem de que nunca se teve tanta liberdade para se dizer que ACM é ladrão mas continua roubando e que Jader é ladrão e continua presidente do Congresso Nacional. 

Dodora – O Roberto Marinho participa de tudo isso...

D. Waldyr – Claro. Ele também pertence à esta burguesia dominante. Ele sabe o que é importante e como divulgar. Eles têm clareza que este tipo de crise não possibilita o surgimento de uma alternativa real de poder. Diferente do final dos anos 70, início dos anos 80, quando surgiram o PT, a CUT, o MST. Eu mesmo fui convidado para algumas discussões em São Paulo pelo Lula, Meneguelli e Frei Betto. Hoje existe essa grande polêmica na esquerda, principalmente no PT, entre aqueles que acham que é possível lutar pelo socialismo e aqueles que consideram que o que está aí é o possível no momento. 

João Henrique – A nossa região era bastante politizada. Hoje o movimento popular está praticamente calado. O que a ditadura militar não conseguiu o neoliberalismo conseguiu?

D. Waldyr – Volta Redonda me impressionou muito quando, pouco antes do golpe militar, no histórico comício da Central do Brasil, os trabalhadores da CSN seguravam tochas acesas. Aquilo era um sinal bem forte da garra daqueles operários. Daí a preocupação da burguesia com Volta Redonda. Principalmente pelo grau de organização dos trabalhadores. A ditadura tentou abafar esse fogo, mas o fogo abafado não foi extinto. E de vez em quando levantava uma labareda. O vento soprava e uma chama brotava. Hoje, eles conseguiram acabar com tudo. Começaram pelo Sindicato, derrubando os lutadores que resistiam a tudo isto. Depois a privatização da CSN. Antes, aconteceu a morte de Juarez Antunes. 

Dodora – O senhor acha que a morte de Juarez foi planejada?

D. Waldyr – A morte do Juarez foi matada. Mataram ele. Disso eu tenho certeza. A grande força de Volta Redonda e da região estava em cima do operariado. Antigamente, havia uma sintonia total entre o Sindicato da CUT e outros movimentos populares. Eles acabaram com isso. 

João Henrique – E qual o papel da Igreja Católica nisso tudo?

D. Waldyr – Hoje é um papel muito reduzido. Dentro da própria Igreja houve um freio. Houve um revertério em relação à Igreja do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellin, onde ficou definida a opção pelos pobres, o apoio à libertação do povo oprimido. Não basta aquela dimensão de socorrer os pobres, dar esmolas. O importante é acabar com a causa da pobreza. E a causa da pobreza é o sistema capitalista. Dessa forma, os movimentos populares passaram a ter o apoio da Igreja. Foi aí que os Estados Unidos, o ‘Tio Sam’, fez uma pressão muito forte sobre o Vaticano, começando o recuo da Igreja. O cardeal do Rio, Dom Eugênio Salles, teve uma influência muito grande para deter o avanço da Igreja. Hoje, ela não incentiva mais esse trabalho transformador, libertador. 

Dodora – Mas a miséria só aumenta na América Latina, na África, na Ásia. A Igreja não vai retomar a ação contra isso?

D. Waldyr – Há locais que ainda permanece. Oficialmente, só há pronunciamentos gerais. O próprio papa João Paulo II diz que a Igreja deve ficar ao lados dos pobres. Mas a sua equipe, a Cúria Romana, não avança de jeito nenhum. Até censurou os teólogos da libertação, como Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez. Por exemplo, o seu secretário de Estado é um cardeal que declarou ser contra o julgamento de Pinochet porque trabalhou como núncio apostólico no Chile durante a ditadura. E o papa teve que fechar a boca. Portanto, a Igreja vive essa ambiguidade. 

Alvaro – Ao mesmo tempo, cresce o movimento dos carismáticos...

D. Waldyr – Sempre foi difícil trazer a massa da Igreja para a luta. A maioria só pensa no lado religioso. E aí eu concordo com o Marx, que disse que o religioso desligado da vida é alienante: “a religião é o ópio do povo”. Não é por acaso que o Tio Sam investiu na proliferação das igrejas pentecostais, que só pensam lá em cima, não pensam cá embaixo. E parte da Igreja Católica também aderiu. O papa Paulo VI ainda fez algumas restrições mas acabou passando. Mas já está perdendo fôlego. 


Alvaro – E a polêmica da instalação da casa de Custódia na região?

D. Waldyr – Não podemos nos esquecer da raiz de toda essa miséria. Antigamente dizíamos: abra uma fábrica e feche duas penitenciárias. Hoje é o contrário. Se as fábricas estão fechando, é preciso abrir penitenciárias. Ele dão valor extraordinário a isso. Mas significa apenas amenizar um pouco a miséria daqueles que estão lá dentro. Eu vejo isso como uma solidariedade aos nossos irmãos que foram levados a esta situação pela falta de emprego, de educação, de saúde.  

Dodora – Mas alguns políticos têm se aproveitado...

D. Waldyr – Do que é que esses politiqueiros não se aproveitam? O bispo Dom João Messe, em seu discurso, meteu o pau nesses políticos que querem se aproveitar da casa de Custódia para negociar obras e vantagens. 

Dodora – Há um espaço vazio junto aos excluídos que a esquerda não consegue ocupar e que o crime organizado está ocupando. Eu fiquei impressionada com as rebeliões de presos em São Paulo, com o grau de organização e mobilização...

D. Waldyr – Com isso, o governo federal liberou dinheiro para construir onze novos presídios em São Paulo. 

Alvaro – Como o senhor vê o papel da mídia na sustentação deste modelo e como podemos avançar nessa área dos meios de comunicação? 

D. Waldyr – Em todos os momentos da nossa história, ao lado da mídia oficial havia a mídia alternativa, independente. O patrono do Pavio Curto, Henfil, teve um papel fundamental no fortalecimento da imprensa alternativa durante a ditadura militar. Aquilo ajudou muita gente que estava na luta a manter-se informada, consciente da realidade. Eu acho que a imprensa alternativa ajuda uma minoria a manter acesa a chama da esperança na transformação. 

Alvaro – Diz-se muito que a juventude está alienada. O senhor concorda?

D. Waldyr – O que é que este mundo está oferecendo à nossa juventude? Os meios de comunicação oferecem uma música vazia, sem conteúdo. Isto alimenta a caldeira da iniquidade que produz esta exclusão. Não se vê nenhum estímulo à consciência crítica da juventude. Num mundo que cada vez mais necessita de educação, informação, conhecimento, a mídia vai exatamente na contramão. 

Alvaro – Mas uma parte da juventude de hoje será a elite dominante de amanhã. Será que a burguesia não está dando um tiro no pé?

D. Waldyr – A juventude está sendo vítima do que a sociedade está oferecendo para ela. Ela está sendo educada para a alienação total. As drogas são consequência dessa alienação. Um jovem que não tem nenhuma esperança vai experimentar tudo. 

Dodora – Uma minoria da juventude está sendo bem preparada. Em Volta Redonda, a pré-escola e o segundo grau regular não têm vagas suficientes, enquanto a Escola Técnica é privilegiada e tem um ensino de qualidade.

D. Waldyr – O movimento estudantil teve um papel fundamental na informação e conhecimento da juventude. Era uma beleza ver o jovem gritando por mudança, por transformação. Hoje há uma política de privatização do ensino e da universidade pública. Isso reduz o acesso daqueles que têm mais aspirações de transformação social à universidade, ou seja, a conhecimentos mais aprofundados.

Alvaro – Apesar de tudo, a burguesia consegue manter a situação sob controle...

D. Waldyr – Houve uma grita geral contra a dívida externa. Até o papa, mesmo sem saber direito o que estava falando pediu o perdão da dívida. Mas ficamos com uma interrogação. Quem vai controlar o dinheiro que o país deixar de pagar? É a mesma burguesia dominante que irá usá-lo de acordo com os seus interesses.

Dodora – Por outro lado, a participação de jovens em algumas manifestações internacionais tem aumentado. Existe o crescimento de alguns movimentos alternativos como o anarquismo e o hip hop, que expressam consciência e rebeldia da juventude com a atual situação. 

Alvaro – Parece que a política institucional é que está mais desgastada junto à juventude, que procura então outras formas de organização...

D. Waldyr – A burguesia está mesmo desmoralizando a política. 

Alvaro – Aí respinga pra todo mundo, seja sério ou ladrão...

D. Waldyr – De vez em quando eles sacrificam um Luís Estevão* da vida para mostrar que a política é suja. 

Dodora – A imprensa alternativa tem um papel importante neste momento...

D. Waldyr – Sem dúvida. Durante a ditadura, os boletins diocesanos ajudaram a despertar muita gente para a realidade da situação. As notícias, críticas e denúncias da imprensa alternativa permaneceram. Elas batem na cabeça da pessoa e ficam ali interrogando, questionando. Precisamos investir nisso. O que não podemos é ficar em cima de uma coisa sem saber porque. Por exemplo: Pastoral Carcerária é só para levar sabonete e escova de dentes para preso? Não, é muito mais importante denunciar o que causa essa miséria da superpopulação nas prisões.   

João Henrique – E a situação da mulher, Dom Waldyr?

D. Waldyr – Há alguns grupos de luta das mulheres que são muito atuantes. Elas investem bastante em jornais, boletins, enfim, na imprensa alternativa. Parece que a mulher é que vai libertar o homem primeiro.  

Alvaro – Dom Waldyr, uma mensagem de esperança para os leitores do Pavio Curto...

D. Waldyr – O nome é muito inteligente. Dizem por aí que eu tenho pavio curto. Já é uma identificação. Me alegro muito com essa iniciativa de vocês, ao resgatar aqui na região a imprensa alternativa. Parece que não é nada, mas é uma semente. E a gente sabe que uma semente desaparece mas depois reaparece com mais força. Evidentemente há um tempo de fermentação debaixo da terra. Mas depois ela vai florir. E aí a gente pergunta: por quê? E acaba lembrado da semente.


Essa foi a capa do Pavio em 2001. Na época escrevemos o nome de Dom Waldyr com "i", algo que só percebemos posteriormente. Nada que tenha prejudicado a entrevista. Seja com "i" ou com "y" Dom Waldyr será sempre lembrado como o defensor dos oprimidos e da justiça social.

O bispo do povo

Dom Waldyr Calheiros de Novaes chegou a Volta Redonda no dia 8 de dezembro de 1966, trazendo a libertadora visão da Igreja do Concílio Vaticano II. Nunca se omitiu diante do arbítrio e da violência da ditadura militar, sendo por isso indiciado em três inquéritos. 

No governo Médici, quatro soldados de Volta Redonda, que serviam em Barra Mansa, foram barbaramente torturados e mortos. Dom Waldyr foi incansável até conseguir a apuração dos fatos. Os responsáveis – 14 militares e dois policiais civis – foram condenados a 474 anos de prisão por tortura, assassinato e ocultação de cadáver. 

De 1967 a 1970, foram presos inúmeros metalúrgicos e jovens militantes de movimentos católicos. Dom Waldyr, informado das torturas sofridas por eles, procurou as autoridades militares e denunciou o fato em todas as missas dominicais da Diocese.

Sempre foi solidário às lutas dos trabalhadores. Em vários movimentos e greves, abriu as instalações da Igreja para que os operários pudessem melhor se organizar e lutar pelos seus direitos. 

A sua presença foi marcante na greve de 1988, quando tropas do Exército invadiram a CSN e mataram três operários. Uma celebração com 60 mil pessoas protestou contra a violência e se solidarizou com os trabalhadores.

Em 1988, Dom Waldyr sofre uma tentativa de sequestro no Rio de Janeiro. Uma semana antes, havia recebido a informação de que ele e o líder operário e prefeito Juarez Antunes “estavam condenados à morte, provavelmente fora de Volta Redonda”. Juarez morreu num desastre de carro em 21 de fevereiro de 1989. 


* empresário e primeiro senador da República (PMDB-DF) a ser cassado em 2000, sendo condenado em 2006 a 31 anos de prisão por corrupção

Fotos: Arquivo Pavio Curto; Alvaro Britto; e José Maria da Silva, o Zezinho do MEP.


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